Querida Kitty está sendo publicado pela primeira vez em português da maneira que Anne Frank sempre imaginou: um romance epistolar a partir das páginas do seu famoso diário.
Em 1942, com a crescente perseguição aos judeus na Holanda ocupada pelos alemães, Anne Frank se escondeu com a família e alguns agregados em uma casa nos fundos do prédio onde funcionava a empresa do seu pai. Por dois anos o grupo conseguiu escapar do cerco nazista e, nesse período, Anne registrou sua vida no esconderijo em um diário hoje mundialmente conhecido.
Fonte da sinopse: Companhia das letras
Mas ela tinha um grande desejo: publicar um romance sobre essa experiência quando a guerra terminasse. Como trabalho preparatório para esse projeto, ela reelaborou minuciosamente seu diário. As cartas à amiga imaginária Kitty, apresentadas agora pela primeira vez como uma publicação em separado, dão prova do talento literário da jovem autora.
Com grande sensibilidade e fino senso de humor, ela relata à sua amiga o cotidiano da vida na casa, as relações entre seus moradores e o clima de terror que aumentava progressivamente com a escalada da guerra. Mais de setenta anos depois, e pela primeira vez em português (em tradução direta do holandês), o desejo de Anne Frank se concretiza com a publicação do romance epistolar que idealizou e escreveu a partir das páginas do seu caderno.
Querida Kitty e Querida Anne eu fui uma garota e sou uma mulher que nasceu bem depois de vocês duas, mas se eu pudesse dizer uma única coisa seria: A existência de vocês duas impactou o mundo de uma maneira que lá no anexo nunca poderia ser imaginada! Sinto muito que você Anne tenha vivido experiências tão horrorosas que a Kitty não tenha recebido uma carta sua com noticias sobre o fim da guerra.
Cerca de dez anos depois da guerra deve ser engraçado ler sobre como nós, judeus, vivemos, comemos e conversamos aqui. Ainda que eu lhe conte muito sobre nós, você sabe bem pouco sobre nossa vida.
Querida Kitty é um romance inacabado em formato epistolar, são cartas que a Anne Frank escrevia para uma amiga imaginaria enquanto se escondia no anexo secreto com a sua família, durante a perseguição nazista aos judeus na segunda Guerra mundial. Se em algum momento você já leu O diário de Anne Frank vai perceber que o conteúdo é basicamente o mesmo, porém a organização separando as entradas do diário e as cartas claramente endereçadas a Kitty fica muito mais interessante acompanhar o retrato da Guerra que Anne fez.
O que mais me chama atenção em Querida Kitty é o caráter memorialístico que o conteúdo tem, para quem leu o diário sabe que Anne escutou no radio uma autoridade do governo pedindo que os cidadãos fizessem um relato de suas vivência para o pós guerra, de pronto Anne que sempre esteve a frente do seu tempo começa tomar notas de seus dias, mas mais do que contribuir com seus relatos a garota tentou fazer a edição de seu próprio livro organizando os como as cartas a Kitty.
Estou muito calma e não me importo mais com toda essa agitação. Cheguei a um ponto em que já não me interessa muito se morro ou se continuo vivendo. O mundo vai continuar girando sem mim e, de qualquer forma, eu não tenho como influenciar os acontecimentos.
Segundo o estudioso KLINGER (2008, p. 11), a escrita de si mesmo é fruto de: “[…] um conceito específico da narrativa contemporânea”. Usar sua vivência narrada a amiga imaginaria, é ao mesmo tempo um testemunho de memória histórica e um movimento literário porque a organização do conteúdo nos faz entender uma linha narrativa. [KLINGER, Diana. Escrita de si como performance. Revista Brasileira de Literatura Comparada, n.12, 2008.]
Há uma coisa boa em tudo isso: a sabotagem contra o governo está crescendo à medida que os alimentos pioram e as ações contra o povo se tornam mais severas. O serviço de distribuição de alimentos, a polícia, os funcionários públicos, todos participam para, das duas uma, ajudar os seus concidadãos ou os entregarem, mandando-os assim para a prisão. Felizmente, apenas uma pequena percentagem de cidadãos holandeses está do lado errado.
A memória individual vivida por Anne se mistura com a memória coletiva de caráter histórico dos que sobreviveram ou não ao holocausto. Com o fim abrupto dos registro é impossível não se questionar quanto material teríamos tido se Anne tivesse sobrevivido ao campo de extermínio.
A voz da Anne que narra suas frustrações e descobertas a Kitty torna-se, de uma maneira simbólica, a voz daqueles que não sobreviveram, o que torna Anne uma autora (ainda que seu romance tenha ficado inacabado) referência da literatura de testemunho, pois é essa uma escrita gerada a partir do trauma como exemplificado por SELIGMANN-SILVA, 2008: Nas “catástrofes históricas”, como nos genocídios ou nas perseguições violentas em massa de determinadas parcelas da população, a memória do trauma é sempre uma busca de compromisso entre o trabalho de memória individual e outro construído pela sociedade.
O testemunho é analisado como parte de uma complexa “política da memória”. [SELIGMANN-SILVA, Márcio. Literatura de testemunho: os limites entre a construção e a ficção. Letras, Revista do mestrado em Letras da UFSM. Santa Maria, RS, UFSM; CAL, n. 16, jan./jul. 1998, p. 9-37]
Eu só pensava que íamos ficar escondidas e estava pondo as coisas mais absurdas na pasta, mas não me arrependo, eu me importo mais com lembranças do que com vestidos.
O que esperar de Querida Kitty
A atmosfera da leitura é meio agridoce, pois ao mesmo tempo que percebemos as sutilezas com que Anne escreve, o talento narrativo de uma garotinha tão jovem nos encanta ao mesmo passo que a tristeza nos acompanha pois sabemos o quanto Anne acreditava na bondade das pessoas e infelizmente tudo que o que ela viveu pós anexo secreto estava longe de ser bondade.
A edição de Querida Kitty da Editora Zahar conta com uma tradução direta do Holandês e para um texto tão importante esse é um grande ponto positivo para se investir no exemplar que ainda conta com uma capa dura lindinha e uma folha de guarda espetacular com a ilustração da fachada do prédio que abrigava o anexo secreto, onde as memórias de Anne e o surgimento de Kitty aconteceram.
Essa é uma história que pode ser contada de diversas formas e através de vários formatos, por isso depois do romance epistolar ser editado de maneira separada gostaria de terminar essa resenha com um vídeo da Anne Frank House que desenvolveu um projeto de “video diary”, esse episódio em especifico narra a descoberta do esconderijo pela Gestapo.
Gostaram da resenha de Querida Kitty? Já leram algum livro da Anne Frank. Conta para gente nos comentários.
Querida Kitty
Autora: Anne Frank
Tradução: Karolien van Eck e Ana Iaria
Editora: Clássicos Zahar
Páginas: 320 | ISBN: 9788537819166
Para ler: https://amzn.to/3EMTS6x
Avaliação:
Ósculos e amplexos, Karina.
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